Momentos de crise como o que estamos vivenciando são celeiros de transformações. E a pandemia da Covid-19 está provocando e acelerando transformações em nossa sociedade.
Na advocacia, não poderia ser diferente. Pessoalmente, tendo o privilégio de ter iniciado na advocacia há mais de três décadas, tenho tido a oportunidade de acompanhar a evolução do Direito e da advocacia. Nesse período, o direito se popularizou, especialmente operacionalização da garantia do acesso à Justiça, novidade contida na Carta Magna de 1988, que se mostrou um momento importante para a consolidação da democracia, cujos reflexos sentimos até os dias de hoje, seja no ordenamento jurídico, nas relações sociais ou mesmo no poder público.
Novamente, estamos diante de um acontecimento, desta vez uma crise global de saúde pública, a pandemia do novo coronavírus. A necessidade de isolamento social, o fechamento dos fóruns, a suspensão das atividades presenciais nos obrigaram a buscar alternativas tecnológicas para continuar a executar nossas atividades. Neste cenário, a advocacia enfrenta grandes desafios para exercer plenamente suas prerrogativas e o Poder Judiciário de Mato Grosso para promover o acesso à justiça.
Os julgamentos de processos no TJMT passaram a ser feitos por vídeo conferência, garantindo-se o acesso do advogado para realizar a sustentação oral. Entretanto, um desafio que se apresenta é a arguição da chamada “questão de ordem”. Embora o TJMT tenha orientado que tais questões possam ser suscitadas até mesmo por meio de aplicativos de mensagens (Whatsapp, por exemplo), no intuito de minimizar os impactos negativos, não há uniformidade nos procedimentos, e cada uma das Câmaras tem adotado procedimentos diferentes para tais situações, o que dificulta enormemente o trabalho dos advogados.
Num julgamento presencial, a “questão de ordem” é suscitada imediatamente pelo advogado. Nos julgamentos por vídeo conferência, não há esse imediatismo da suscitação, o que pode levar à perda do efeito da suscitação. Aduzir a “questão de ordem” no formato atual, de maneira plena, tem sido difícil, pois o advogado não pode entrar no julgamento a qualquer momento e o tempo de resposta no Whatsapp nem sempre é imediata. Além disso, há impactos significativos no ritmo da sessão, que pode implicar num sério obstáculo ao exercício do direito de ampla defesa.
Da mesma forma, a entrega de memorais foi afetada pela impossibilidade de atendimento presencial do advogado. Tal atividade é essencial no exercício do direito de ampla defesa. É o momento em que o causídico tem a oportunidade de chamar a atenção dos julgadores para fatos e provas importantes para o julgamento do processo. Particularmente eu gosto de despachar pessoalmente, olho no olho. Mas, neste momento em que o aperto de mão está suspenso, a tecnologia nos auxilia a ir de maneira segura ao Judiciário e exercer nossa profissão. Todavia, o efeito não é o mesmo do despacho pessoal.
Há, ainda, os julgamentos virtuais, aqueles em que os julgadores sequer se reúnem, nem presencialmente, nem por vídeo conferência. Nesses casos, verifica-se a realização de julgamentos em bloco, nos quais, em minutos se julgam dezenas de processos, sem que as partes consigam ao menos ter conhecimento que seu processo está sendo julgado.
É perceptível que o TJMT está adotando diversas medidas para efetivar a entrega da prestação jurisdicional neste momento de crise. Há esforços para implantação de melhorias. Algumas Câmaras, por exemplo, atendem o advogado por videoconferência, como no caso dos Desembargadores Rubens, Guiomar e Serly. O Desembargador João Ferreira, por exemplo, recebeu um memorial por telefone, ele mesmo atendeu minha ligação. São iniciativas que podem ser ajustadas e padronizadas em todo o Tribunal para trazer mais segurança para o exercício do advogado.
Outro detalhe que precisa ser observado é a capacidade de acesso do advogado às tecnologias necessárias para participação, de um julgamento por vídeo conferência. Para não ter surpresas desagradáveis, é necessário, além dos equipamentos adequados, o acesso a um bom e confiável sinal de internet, o que é caro e raro em Mato Grosso.
Tenho contato com jovens advogados, colegas de pequenos escritórios e também do interior do Estado que tem relatado inúmeras dificuldades para acesso às sustentações orais e entrega de memoriais no formato de vídeo conferência.
Neste ponto, é imprescindível a atuação da OAB/MT. Vejo a belíssima campanha de arrecadação de alimentos da CAA/MT para ajudar os advogados em situação de dificuldades. Mas, além do peixe temos de dar condições de pescar. Sem conseguir exercer sua atividade, o momento penoso não irá passar. Acredito que a OAB tem um importante papel neste momento, especialmente para criar uma estrutura adequada para o exercício das prerrogativas da advocacia no ambiente digital. Uma boa saída seria proporcionar uma estrutura na sede da OAB e nas subseções do interior, ao menos menos nas cidades polo.
Sabemos dos desafios do Poder Judiciário e da OAB Mato Grosso. Essas instituições carregam consigo o protagonismo desse momento de mudança. O empenho tem sido grande, mas podemos ir além e atuar nos detalhes, os quais muitas vezes se mostram imprescindíveis para o bom desempenho do papel da advocacia.
Estamos diante de um caminho sem volta. O ‘novo normal’ que teremos depois da pandemia será diferente. Com menos deslocamento, viagens, trânsito e dificuldade de estacionamento. Entretanto, precisamos fazer ajustes imediatamente, sob pena de causar prejuízos enormes às partes e à advocacia. Saber que cada mudança atinge o escritório grande e o pequeno, o advogado experiente com estrutura e o jovem em começo de carreira. Estamos, neste momento histórico com uma grande responsabilidade nas mãos, responsáveis por iniciar a construção do futuro da advocacia e da Justiça.
Ussiel Tavares é advogado e ex-presidente da OAB Mato Grosso